Os poucos rótulos de erva-mate ainda existentes, formam um conjunto de documentos exemplares de um período dos mais importantes da história do Paraná. Reproduzidos em sua maioria pelo processo litográfico, representaram, durante longo período, a única solução com vantagem econômica e técnica para a produção de material impresso a cores com finalidade comercial. Em geral, um rótulo típico trazia a marca do produto, o nome do fabricante, o nome do importador e ilustrações. De tamanhos diferentes, tinham a forma redonda como as tampas das barricas de pinho usadas no transporte da erva-mate e que, por sua vez, possuíam dimensões padronizadas. Muito da atenção, do interesse e, principalmente, da originalidade das soluções gráficas destes impressos, foram determinadas diretamente pela forma das embalagens de madeira.

Esta publicação pretende destacar a importância de se preservar estes objetos gráficos tão frágeis e, ao mesmo tempo, tão valiosos como testemunhas do nosso passado. Em futuras postagens, outros exemplares serão mostrados.

O texto a seguir, sugere uma leitura de um rótulo de erva-mate, tendo como referência o conceito de representações sociais, proposto pelo historiador francês Roger Chartier e considerado por ele um dos conceitos chave da história cultural. Trata-se de uma revisão do texto originalmente publicado na minha dissertação de mestrado, defendida em 27 de fevereiro de 2007, no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

AMOROSA
Fabricante: Indústrias Adalberto Araújo S. A.
Ano de fundação: 1929.
Cidade: Ponta Grossa.
Impressão do rótulo: Litografia Progresso, Curitiba.
Diâmetro: 23 cm.
Importador: Amoroso & Pozzi S. A., Uruguai.
Coleção: Parque Histórico do Mate.

A ilustração ocupa a maior parte da área do rótulo da erva-mate Amorosa, enquanto as informações textuais ficam em seu entorno, aplicadas na parte superior e em duas faixas iguais, em curva, nas laterais da parte inferior. Esta forma de distribuir os elementos conduz a leitura e destaca o que é mais relevante. A ilustração é estruturada por linhas de contorno e as cores, puras, sem meio-tom, cumprem a função de preencher os espaços delimitados pelos contornos do desenho, como nas histórias em quadrinhos.

A ilustração representa uma cena rural, ao ar livre, onde se reconhece uma garota que segura, em sua mão direita, uma cuia de chimarrão com a bomba. Ela apoia um dos cotovelos sobre uma tábua que é parte de um cercado de madeira e onde também está apoiada uma chaleira. No fundo, completando a cena, vê-se uma árvore de erva-mate.

A marca do produto adjetiva a figura feminina representada no rótulo. A capacidade de demonstrar afeto, prometida pela palavra amorosa e sublinhada pela imagem feminina, só faz sentido em relação à bebida. A estratégia de comunicação, frequente ainda hoje, busca persuadir os consumidores pela emoção. Serve-se de uma figura feminina “amorosa”, jovem e bem humorada, que aprecia a erva-mate na forma de chimarrão, para convencer/seduzir os consumidores a fazer a mesma escolha. Ainda que não exclua as mulheres como consumidoras, já que é uma figura feminina desenhada no rótulo bebendo chimarrão, o jogo das representações entre texto (Amorosa) e imagem, não deixa dúvida de que a mensagem visa uma parte específica dos consumidores de chimarrão, ou seja, a parte masculina.

Este processo de representação vai ser reforçado por outros atributos, como a indumentária e demais acessórios observados na ilustração. A garota usa um chapéu amarelo, tem um lenço vermelho no pescoço, veste uma blusa xadrez com mangas bufantes de padronagem diferente da blusa, além de uma calça justa, usada com um cinto, também azul e com uma grande fivela. Trata-se de uma jovem que sorri para demonstrar sua satisfação pelo consumo da bebida. Esse conjunto de detalhes permite questionar se a mulher representada no desenho, vestida como foi descrito, poderia ser considerada típica, isto é, as mulheres camponesas ou as que habitavam no meio rural no sul do Brasil, à época da impressão do rótulo, vestiam-se como a figura nele representada? Dificilmente. Como explicar essa discrepância?

Este rótulo, se considerarmos que a empresa Indústrias Adalberto Araújo foi fundada no Paraná, na cidade de Ponta Grossa, em 1929, deve ter sido produzido na década de trinta, período marcado pela expansão do cinema americano mundialmente. Os westerns, conhecidos, entre nós, como filmes de faroeste, tornaram-se então muito populares. Produzidos como reação a Crise de 29, possuíam forte conteúdo de afirmação cultural e identitária, num momento em que a autoestima da sociedade norte-americana rivalizava com o colapso na sua economia. Estes filmes foram vistos no Brasil e sua divulgação, como é comum até hoje, era feita, principalmente, através de fotografias e reportagens publicadas em revistas e jornais. A comparação das fotos das atrizes que representavam as cowgirls (Figura 1) naquelas produções cinematográficas, com o desenho da figura feminina do rótulo de erva-mate, em análise, não deixa dúvidas quanto à fonte de inspiração do litógrafo que desenhou o rótulo. O figurino e os outros atributos são muito parecidos para serem considerados apenas coincidências. Por outro lado, ainda que, na época da impressão desse rótulo, as cowgirls fossem raras como personagens de histórias em quadrinhos, o estilo da ilustração é semelhante ao usado neste tipo de publicação.

Outra possibilidade, a ponderar, diz respeito a um tipo de representação da figura feminina muito popular a partir dos anos 20 do século passado, as chamadas pin-ups. (Figura 2). A denominação originou-se da forma de divulgar ilustrações de figuras femininas por meio de calendários que eram pendurados (pin-up) nas paredes. Este estilo de figuração se soma a outros que tem na representação do corpo feminino seu tema recorrente, como são exemplares as imagens reproduzidas nos trabalhos litográficos realizados pelo francês Jules Chéret (1836–1932) e pelo checo Alphonse Mucha (1860-1939), consideradas precursoras das pin-up girls.

A partir daí, pode-se compreender a razão de a representação no rótulo da erva-mate Amorosa ter sido aceita em uma época onde mulheres usando calças eram raras, sobretudo calças justas como a que veste a “amorosa”. A imagem foi produzida para atuar de forma simbólica, no campo da fantasia masculina, como de resto, atuavam as personagens do cinema e as pin-ups. O processo de comunicação, proposto no rótulo, funcionou justamente por isso, já que não ilustrava uma mulher típica do meio rural brasileiro, mas uma idealização com referência na fantasia das imagens da propaganda, do cinema e dos quadrinhos.

Independente, no entanto, destas considerações, o rótulo da erva-mate Amorosa é um exemplo de como as representações sociais são instrumentos de coerção social em muitos níveis, instituindo papéis e conformando atitudes e comportamentos, muitas vezes contraditórios, e que vão se refletir nas práticas culturais dos grupos e indivíduos. O projeto gráfico do rótulo serviu, no passado como hoje, para, ao mesmo tempo, enaltecer as qualidades do produto e revelar as estruturas de pensamento atuantes na sociedade do período.